11. Capítulo:

León a O Cebreiro

O dia tinha acabado de nascer quando saímos do convento-refúgio. Tínhamos que caminhar cruzando a cidade em direção à ponte de São Marcos, sobre o rio Bernesga. Seguíamos pela Calle de Renueva e entramos na Avenida Suero de Quiñones. A rua estava deserta. Um homem mal vestido atravessou-a e vinha em nossa direção. Fiquei alerta. Achei que ele queria esmola, e já fui lhe dizendo, quando se aproximou, que estava sem dinheiro, mas ele apenas nos deu um santinho e seguiu pela avenida por trás de nós.

Era um santinho de Nossa Senhora de Fátima, com uma oração para a santa em português! Quando nos viramos para ver de novo o homem, ele não estava mais na rua. Outra coincidência! De manhã cedo, só nós na rua, sem saber de onde éramos, um desconhecido nos oferece um santinho em português...

Chegamos ao grande Hostal de San Marco, construção de 1151, antigo monastério e hospital de peregrinos, e hoje um hotel parador de altíssimo luxo. Atravessamos a ponte e andamos pelos subúrbios de León até Virgen del Camino, onde tomamos café da manhã.

Dali seguimos por um caminho alternativo até o Hospital de Órbigo, passando ao largo de Villadangos del Páramo. Neste dia, andamos direto trinta e dois quilômetros e de noite tive febre por esgotamento muscular. Não saí do beliche nem para jantar.

Pela manhã andamos quilômetros por áreas permitidas para caça, e ficamos de olho nos caçadores, seus cães e a direção de seus rifles. Toda hora ouvíamos um tiro ecoando. A estrada asfaltada ficava muito longe, por isso não tínhamos alternativa e prosseguimos com atenção. Chegamos a Astorga pela hora do almoço e ficamos muito tempo apreciando as maravilhas arquitetônicas da cidade. Visitamos primeiro o palácio episcopal, em estilo neogótico, construído no final do século passado e inaugurado em 1913 por Antonio Gaudí. Impressionante a opulência vivida pelo bispo de Astorga, vista nos móveis, louças e obras-de-arte! Ao lado, a suntuosa catedral, mais uma dedicada a Santa Maria, em estilo gótico de 1471. Passamos por um restaurante bonito e neste dia comemos bem. Wilsy comeu até alcachofras! Continuamos pela tarde inteira a caminhada até Rabanal del Camino. Lá nos alojamos em um refúgio na antiga casa paroquial, mantido e dirigido pela confraria inglesa "Confraternity of Saint James". O lugar é interessantíssimo, confortável, e os ingleses, hospitaleiros muito simpáticos.

O dia seguinte foi muito puxado, mas isto era esperado. Foram trinta e dois quilômetros, com grande subida no início, de 1100 metros até 1515 metros na Cruz de Ferro e, depois, descendo até 541 metros em Ponferrada. Depois dos primeiros cinco quilômetros chegamos a Foncebadón, cidade completamente deserta, que teve sua origem nas obras edificadas pelo eremita Gaucelmo, mais ou menos pelo ano 1100, que ali construiu um hospital de peregrinos e a igreja de Santa Maria Magdalena, anexa ao hospital. Depois o local foi habitado por outros eremitas, e, por fim, totalmente abandonado. Por ali correm muitas histórias de fantasmas, cachorros agressivos, lobisomens. Muitos peregrinos esperam outros para passar em grupo pela larga rua principal. Estávamos sozinhos, e Wilsy passou pela cidade clamando ajuda de São Roque, que, segundo ela, a protegeria contra agressão de cachorros. O dia estava lindo, com sol abundante, e, apesar dos barulhos estranhos de portas e janelas batendo ao vento, não vimos absolutamente nada, a não ser as edificações em ruínas e vazias. Muito estranho uma vila com várias casas, algumas até com mais andares, totalmente abandonada!

Mais uns poucos quilômetros e passaríamos pela famosa Cruz de Ferro, um monte de pedras com um mastro de madeira no meio, encimado por uma modesta cruz de ferro. A história deste monte de pedras se perde no tempo, pois é anterior ao período dos romanos. Cada peregrino vai jogando uma pedra, somando-a às outras. Os romanos chamavam estas pedras de "muro de Mercúrio", deus dos caminhantes, e posteriormente Gaucelmo, o protetor dos peregrinos por estas paragens, colocou o mastro e a cruz no alto do monte de pedras. Alguns peregrinos jogam a pedra e fazem pedidos, e outros jogam a pedra representando coisas ruins de suas vidas, que ali são deixadas.

Pouco antes de nosso embarque para a Espanha, recebemos em casa a visita de uma amiga de São Paulo, que não estava em um bom momento de sua vida. Estava angustiada e triste. Durante a visita, absolutamente sem explicação, o vidro tipo blindex do box do chuveiro do nosso quarto espatifou-se. Só estávamos nós em casa e na sala. O vidro quebrou sozinho. Aquela energia concentrada foi forte o suficiente para quebrar o vidro, e eu levei para a Espanha o maior fragmento para deixar na Cruz de Ferro. Pela viagem toda este pedaço de vidro ficou em um bolso lateral da minha mochila, e eu conferi várias vezes a sua presença ali. Na Cruz de Ferro, virei de costas para a cruz, pedi a Jesus que realmente absorvesse todos os sofrimentos ali deixados, e que o acúmulo deles fizesse sentido um dia para cada um em particular que ali havia depositado seus males, e joguei o vidro para trás. Wilsy e Nacho estavam ao pé da cruz, onde se viam muitas cartas, bilhetes, santinhos e até um par de sapatos pendurados.

Em Manjarin, fizemos mais uma parada. Nos sentimos como hippies nos anos setenta. Ali mora um eremita de barba, que recebe peregrinos em uma espécie de cabana. Vive de artesanato rudimentar em barro e pintura. Fala de ocultismo, de paz e amor. Oferece água de uma moringa comum, e café com biscoito, de graça, aos peregrinos. Poucos compram suas quinquilharias, pois representam mais um peso na mochila. Os turistas são os clientes.

Em Molinaseca encontramos as botas do Nacho, que dormia na frente de uma barraca que servia de refúgio, e outros peregrinos também ali ficaram. Seguimos até Ponferrada.

Em Ponferrada encontra-se o grande e majestoso castelo dos templários, resquício da importância desta ordem de cavaleiros medievais. Em frente ao castelo está o refúgio, onde o hospitaleiro queria nos apresentar a um brasileiro de Minas Gerais. Ele se dizia cavaleiro templário e nos disse que o mineiro também o era. Esperamos um pouco a chegada do brasileiro e assistimos a uma cena para nós raríssima: o abraço de dois pretensos cavaleiros templários. Quase se beijaram na boca! O brasileiro era baixinho, de barba, e usava um chapéu de palha com uma pena em cima.

_ Muito prazer! De onde você é no Brasil?

_ De Belo Horizonte. E vocês?

_ Rio de Janeiro. O hospitaleiro nos disse que você é cavaleiro templário. Existe esta ordem até no Brasil?

_ É... Existe uma filial da ordem em Minas Gerais...

_ E como é que é esta ordem?

_ Não dá para falar... A ordem é secreta...

_ Tá bom. Você já esteve várias vezes no caminho, já que a ordem é ligada a ele?

_ Não, é a primeira vez. É a primeira vez que venho à Espanha, e o hospitaleiro, o primeiro templário que encontro!

_ E onde você começou o caminho? Na França?

_ Não, em León.

Quase rimos. Nos arrumamos e fomos conhecer o castelo dos antigos colegas de nosso novo companheiro mineiro!

A missa das oito neste domingo estava completamente cheia, e quase caio de tanta dor muscular enquanto a assistia em pé.

Iniciamos a quarta semana de viagem na segunda-feira. Estávamos curiosos para conhecer um amigo do Paulo Coelho, chamado Jesus Jato, em Villafranca del Bierzo, ponto importante da região do Bierzo, vale que cultiva uvas de excelente qualidade, e último ponto da província de Léon, antes da Galícia. Paulo nos deu um bilhete para o Jesus Jato, pedindo-lhe que nos mostrasse uma queimada.

Chegamos em Villafranca, passamos por um refúgio da prefeitura, em um prédio todo moderno, aparentemente confortável, e seguimos em direção ao refúgio do Jesus Jato, chamado Ave Phoenix. E quase desistimos de ficar lá. Era um acampamento muito pobre, de lona por vezes rasgada, as camas velhas e algumas quebradas, e uma sala de telhado de zinco, onde era o refeitório. Jesus Jato não se encontrava e, segundo nos disseram, estava na obra do refúgio novo. Pouco depois ele chegou e ficou muito feliz de nos encontrar ali com um bilhete do Paulo. Conversamos a noite inteira. Nos contou que seu pai e seu avô foram hospitaleiros naquele mesmo lugar, e que o destino de sua família era receber peregrinos.

_ Nós sempre temos um lugar vazio à mesa, pois a qualquer momento pode chegar um peregrino com fome! Aprendi isso com minha avó, que até no Natal e Ano Novo, em pleno inverno, deixava uma cadeira vazia na mesa da ceia, e, por incrível que pareça, sempre aparece um peregrino solitário e com frio nestas noites!

Enquanto conversava, fazia massagens em peregrinos com dor muscular, usando umas ervas estranhas, de cheiro forte. Foi muito interessante ver a cara do inglês que, do alto de sua fleuma, estava recebendo as massagens feitas com força pelas mãos rudes e sujas de Jato! Nada mais surreal!

Jato conseguira uns planos de como havia sido um refúgio ali naquela esquina, lá pelo século XV, e resolveu reconstruí-lo respeitando o projeto. A construção seria totalmente de pedra, como a original, e três paredes já subiam até um metro mais ou menos.

_ E como você consegue recursos para todo o seu plano?

_ Doações e com a venda de broches e pequenas lembranças que não pesam! O que peço é o pão nosso de cada dia, e ele não nos tem faltado. Cristo já disse: "Olhai os lírios do campo. Lindos e bem vestidos pela natureza. Por acaso lhes falta algo?"

Tive certeza de que Jato tinha a paciência necessária e que seu refúgio ficaria pronto um dia. Mais outro grande ensinamento.

Dormi um pouco, e Wilsy me acordou para a queimada.

Jato é um homem simplório, quase rude, mas muito simpático. Usando óculos preto, todo arranhado e remendado com esparadrapo, é um tipo do qual não se esquece mais.

A queimada é uma bebida da região, feita de um destilado de frutas que é flambado e jogado em chamas para cima, com uma concha de sopa. Com as luzes apagadas, todos os peregrinos em círculo, Jato recitou um poema às bruxas enquanto jogava a queimada em chamas para o alto, rindo abundantemente. No fim, rezou para seus inimigos, para que pudesse ter a oportunidade de ajudá-los com a força da luz.

Tomamos, cada um, um copinho da bebida doce e muito forte. Ao final, o resto da queimada é guardado em um vaso grande de vidro, para ser usado na próxima vez. Ficamos então sabendo que o mais importante no gosto da queimada é a mistura meio a meio com o que sobrou da bebida anterior. Se feita apenas com destilado novo e frutas novas, não tem o mesmo gosto!

Dormimos acampados dentro do saco de dormir, pois a brisa estava fria. No dia seguinte, subimos de 500 metros em Villafranca a 1300 metros em O Cebreiro, já na Galícia.